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- TEXTOS - 

O SILÊNCIO

CARVALHO, Nelson. In Certo silêncio de pó. Brasília: Coelhos da Selva Editores, 2017, pp. 43-46.

A mulher. Somente ela. Todo o resto são adereços para compor o cenário. Nada mais importa. Talvez o silêncio, mas o silêncio faz parte dela, emana de seu corpo, de seus gestos curtos e suaves. O silêncio é seu cheiro espalhado. Parece conduzir seus movimentos. É anterior a eles, estrutura na qual eles se constroem.

 

A mulher olha além da vidraça. Seus olhos estão ancorados na ausência. Não olha para o gramado verde, amplo, verde de maio, longe ainda a seca. Não olha para as árvores e os prédios adiante, recortados de azul, moldura de céu. Não olha para a calçada entre o gramado e os prédios, nem para as pessoas que passam. Não olha para os pássaros que ciscam migalhas e cheiro quente de pão saindo pela janela. Não olha para os vapores. Nem para o Nelson, o relojoeiro, abrindo a oficina, seu nome pintado na porta. Nem para os fundos da drogaria onde uma vendedora ambulante de café vende os primeiros goles do dia e cigarros, e entre tragos e goles os olhos vão sendo acordados, sequer o foram pelo sacolejar dos ônibus em que vieram, mais serviram para acalentar um resto de sono preso nas pálpebras fáceis de fechar. Nem olhou para a Gercimara varrendo a calçada em frente ao seu salão de beleza, Salão da Wannda, assim mesmo, com dois enes para impressionar, é mais americano, disseram, melhor que Gercimmara com dois emes, como ela havia pensado, falando com a mãe ao telefone, meses de Brasília e de desemprego, o pai mandando algum dinheiro para o negócio, o pai estranhando, então Gercinha, a feia, vai abrir um salão na capital?, mas isso ela não ouviu, foi um comentário do pai com a mãe depois que desligaram o telefone, eles se orgulhariam da filha abrindo as portas do Salão, a placa no meio do passeio, à vista, cortes a prazo, está escrito, por mais dúvidas que possa gerar. Logo chegará a primeira funcionária, são três, a manicura, talvez, ela está atrasada de novo, Wanda já guardou a vassoura, olha em direção à parada de ônibus, olha o relógio e sorri para a mulher gorda que sobe as escadas, primeira cliente do dia. Do dia-sim-dia-não, ela já sabe a rotina da gorda, e com essa funcionária nova que não chega a rotina é esperar.

 

São oito horas da manhã de uma quarta-feira, e a mulher, protegida em seu silêncio, ou por ele enclausurada, não vê nada do que acontece, os eventos que amanhecem o dia. Não interessam. Em outros tempos interessavam, agora não. Ela não está ali por eles, os movimentos que põem o dia para funcionar, a rotina. Está ali por outra razão, porque ali acontece. Dentre os tantos lugares por onde já passou, alguns bem próximos daquilo que buscava, outros menos, ali acontece. Ali acontece a claridade. Seus olhos passeiam por ela, reconhecendo-a, tocando-a, trazendo para dentro de si a luz branca filtrada por venezianas, explodindo no branco das paredes a sua volta. Paredes altas, vidraças grandes, vapores quentes, o cheiro de pão, dos primeiros cafés. O silêncio. Ela fecha os olhos, a mulher, fecha a porta de sua alma, a janela, diriam alguns, por onde a claridade entrou. Fecha para guardá-la dentro, a claridade percorrendo suas entranhas, descolando os tecidos de breu que a noite tece. Fecha os olhos para reter as lembranças que vão querer sair dos porões da memória para tomar um pouco de ar puro, acordadas pela luz. Ela fecha os olhos para não chorar.

 

Ela faz isso sempre, acorda rotinas do dia, pensa o homem de sobretudo escuro, sentado numa mesa de canto, do lado oposto, o homem de barba e cabelos brancos, magro e estrábico, segurando uma xícara de café com leite média e um pouco de espuma por cima, por favor, ele também acordando rotinas. Ela não vai chorar.

 

Ela fica um tempo assim, fazendo a digestão da claridade, movendo-se nas lembranças que se formam dentro de sua procura. Domesticando-as. Preparando-se para enfrentá-las. Só então pede um café puro, forte, curto. Só então abre os olhos, só depois do primeiro gole. Então uma lágrima, a primeira de duas que vão cair, escorre. Mas ela não se importa. Talvez uma lembrança que precisasse sair. A mesma de todos os dias. Aquela que não se deve reter. Ou talvez aquela selvagem. Lembrança que não se consegue lembrar.

 

O homem de sobretudo se aproxima, senta-se a seu lado. Ela não se importa. Ela não olha para ele. Sabe de sua presença, mas não reage. Ele não altera o silêncio, ela sabe. Não o perturba. Sabe que ali ele também se reconhece. Seu estado de espera, seu movimento. O silêncio é sua ação.

 

Abriram as ruas na quadra, ela diz. Os tratores vieram e abriram as ruas. Ventava muito e nós estávamos lá. Era setembro de 69 e o pó vermelho impregnava nossos poros. Corríamos naquela poeira, ou dela. Dos redemoinhos com que nos divertíamos. Depois o cheiro de piche, dos caminhões derramando aquela calda negra, preparando a terra para receber o asfalto. Andamos em bicicletas sujas de preto, os para-lamas, as rodas, as roupas, os tombos, os risos. À noite o cheiro sobe, enlevecido pela friagem do chão. Corremos, grudando os tênis naquela gosma pegajosa e escorregadia. Estamos rindo. Mas ele não está lá, ela diz, a mulher. Ele não está entre nós. Eu não posso perdê-lo, sabe? Não posso. E nesse momento a segunda lágrima cai. Ou a mesma, apenas sua continuação.

 

A mulher olha além da vidraça, além da claridade, além do silêncio e coloca seus óculos escuros. Alguma coisa precisa ser encontrada naquelas lembranças, ela não sabe o quê. Nem ele. Ela mexe na bolsa, apanha algumas moedas que pagam seu café e deixa-as sobre a mesa. Aperta o casaco no pescoço, a gola. É uma manhã fria. Preciso andar um pouco, ela diz baixo, o silêncio em seu corpo como uma segunda pele. Preciso andar. Quando se levanta, tudo parece parar, o tempo, o cheiro de pão, de café, tudo menos as lembranças. Tudo menos aquela lágrima que não para de sangrar. Ele também se levanta. Pergunta se pode acompanhá-la. Ninguém ouve. Ninguém se importa. Ninguém repara mais neles. A rotina acordando o dia na padaria.

 

Na calçada entre o gramado e os prédios recortados de azul, ela segura o braço dele, apoia a cabeça em seu ombro e diz. Obrigada, ela diz. Obrigada por me trazer de novo aqui, ela diz. E não diz mais nada.

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