Apresentação
Brasília é, hoje, uma cidade como outra qualquer do Brasil. Do sonho inspirador de cidade modelo da modernidade mundial tido por seus idealizadores, muito pouco ou nada ficou, a não ser a desilusão e a decepção daqueles que sonharam uma capital que fosse a referência para o desenvolvimento civilizatório e urbanístico do país. Pela incompetência de seus governantes locais, pelo individualismo, egoísmo, falta de educação, descompromisso, desonestidade, desrespeito, arrogância e ignorância de muitos de seus habitantes, a cidade se deteriorou, envelheceu muito precocemente, apodreceu estruturalmente, se cercou de pobreza, miséria, violência, criminalidade, profundas desigualdades sociais e de todos os graves problemas urbanos comuns a qualquer uma das demais grandes cidades subdesenvolvidas do Brasil. Por fim, pela ação espúria e corrupta dos três poderes governamentais dos quais ela passou a ser sede, Brasília tornou-se, entre os brasileiros, sinônimo de corrupção, ladroagem, impunidade, injustiça, ostentação e mentiras.
Por outro lado, o Distrito Federal, a que comumente se denomina de ‘Brasília’, compreende não somente a própria cidade de Brasília, localmente chamada de Plano Piloto, mas também um conjunto de espaços urbanos, ou cidades-satélites, desde sempre considerados como o subúrbio de Brasília. Muitas destas apresentam grandes problemas de urbanização, de saneamento e de infraestrutura, além de comportarem parte majoritária da crescente violência do Distrito Federal. Esta realidade evidencia um enorme contraste de qualidade de vida entre o Plano Piloto, com ares de sociedade desenvolvida, e a maioria das cidades-satélites, as quais encontram-se ainda com fortes traços de subdesenvolvimento.
Desde a fundação da nova capital até o momento atual, todos estes espaços têm desenvolvido características culturais e urbanas com fortes traços de diferenciação. Tais traços, os quais podem ser percebidos em maior ou menor grau nas cidades-satélites e no Plano Piloto, são oriundos, principalmente, dos diversos estados de onde vieram e ainda vêm grande parte dos moradores do Distrito Federal. Cada cidade-satélite tornou-se local de encontro e agrupamento de pessoas que acabaram por dar características e uma identificação aos locais onde se fixaram. Em Ceilândia, por exemplo, parece ter havido uma maior identificação com a cultura nordestina. No Cruzeiro, evidenciou-se a cultura carioca do Rio de Janeiro. Enquanto que, em Taguatinga, acentuaram-se os traços mineiros e goianos. No Plano Piloto, local de maior agrupamento de pessoas com mais alta escolaridade e poder aquisitivo, estes traços culturais já não parecem tão marcantes, acentuando-se uma certa neutralidade que passou a ser a identidade cultural tida como brasiliense, o que se deu, provavelmente, pela influência da cultura formal sobre tais traços característicos que são mais próprios da cultura popular.
É em meio a este ‘desenvolvimento’ urbano de pouco mais de cinquenta anos que a poesia vai nascer e começar o seu amadurecimento na capital federal do Brasil. Nasce pelas mãos dos candangos[1] que para Brasília vieram no período de sua construção e em seus primeiros anos de vida. Brota e se desenvolve nas várias cidades-satélites e no Plano Piloto. Espaços que hoje abrigam associações de escritores e academias de letras fundadas por estes primeiros expoentes e que, aos poucos, foram agregando outros nomes já nascidos em solo brasiliense.
Tal qual sua origem, a poesia de Brasília é diversificada também em sua temática, em suas formas de olhar o mundo e o seu mundo. Vai do cordel ao soneto, dialoga com os modernistas, nutre-se na fonte dos concretistas, flerta com o haicai e vai ganhando seu corpo, seu espírito com o passar dos anos. Tão diversa quanto a origem de seus poetas, na poesia de Brasília há também uma convergência: a própria cidade. É assim que, apesar de jovem, a cidade e sua poesia já apresentam raízes profundas no solo árido e cor de sangue do cerrado e erguem-se tortuosas como o tronco de suas árvores pequenas e frágeis, como em processo de identificação natural entre a terra e seu fruto.
É certo que a produção poética que surge e na nova capital vem da pena daqueles que aqui chegaram, principalmente entre os funcionários públicos que deixaram a antiga capital para ocupar os gabinetes do cerrado. Não por menos, grande parte dos poetas que primeiro publicaram em Brasília eram funcionários da Câmara, do Senado, tribunais e órgãos do poder executivo, os quais, pelas funções que ocupavam, provavelmente, traziam em sua bagagem intelectual alguma formação formal mais acentuada em suas diversas áreas. Para Luiz Carlos Guimarães Costa, “os escritores de Brasília, como tudo na própria capital, são uma miscelânea de brasileiros nascidos nos mais diversos rincões, que para cá trouxeram suas vocações e seus talentos, originais é verdade, mas moldados em suas origens”[2].
J. R. de Almeida Pinto, em seu estudo Poesia de Brasília: duas tendências (2002), entende que a produção poética de Brasília estaria dividida em duas grandes vertentes: a “poesia culta” e a “poesia marginal”, as quais apresentam traços próprios, além dos traços individuais que cada escritor imprimi em sua obra. Para estabelecer esta distinção, o pesquisador fundamentou-se em quatro áreas relacionadas à produção do texto poético: (1) a linguagem; (2) a temática; (3); o papel do patrimônio cultural e literário; (4) a concepção da poesia e do poeta[3], aspectos nos quais distinguem significativamente. A primeira apresenta fortes influências temáticas, filosóficas e formais da poesia Modernista das décadas de 20, 30 e 40, fazendo uso de uma linguagem ainda formal e sobre temas de reflexão ontológica, com tom de seriedade. A segunda, por sua vez, dialoga com os movimentos de vanguarda que surgem a partir da década de 50, como a poesia concreta, no que concerne à forma, enquanto a linguagem é extremamente coloquial, por vezes atingindo o vulgar, com temas que apresentam pouca profundidade, irreverentes, corriqueiros e flertando com a piada.
A pesquisa in loco nas associações de escritores, sindicatos de escritores e academias de letras existentes no Distrito Federal e a leitura das várias antologias poéticas brasilienses já publicadas confirmam as impressões de que a poesia produzida na cidade ainda tem a predominância de escritores mais antigos e naturais de outras cidades e estados brasileiros. Os poetas nativos de Brasília ainda não conseguiram ocupar espaços significativos e tradicionais para a poesia, mesmo com a ausência daqueles poetas candangos consagrados no panorama literário brasiliense já falecidos.
No corpo da antologia intitulada Deste Planalto Central – Poetas de Brasília (2008), organizada por Salomão Sousa, por exemplo, entre os 51 poetas elencados, apenas um nasceu em Brasília. Tal qual a cidade que se fez da miscigenação de culturas oriundas de todo o território brasileiro, também a poesia dita brasiliense, até o momento, apresenta, em sua maioria, poetas não-nascidos na cidade, mas originários das diversas regiões e estados do país e ainda de outros países. Segundo o próprio organizador, o seu trabalho baseou-se na coleta de informações sobre muitos outros autores os quais não figuraram entre os 51 escolhidos, mesmo tendo tido acesso a muitas antologias das quais nenhum nome tenha sido escolhido como representativo para aquilo que o próprio organizador denominou de “formação da poesia de Brasília”[4]. Contudo, mesmo tendo acesso a muitos autores, “para não diminuir a representatividade dos poetas que se encontram em atividade, a coletânea não contempla aqueles que já faleceram”[5], sendo pretensão do organizador “que a formação da poesia de Brasília”[6] fosse, nesta sua antologia, apresentada sob a ótica da obra dos próprios poetas eleitos. Esta realidade acaba fundando um cânone[7], ainda que muito jovem, que espelha esta ideia da capital como ponto de convergência para a mistura multicultural; o que parece ser a sua função primeira.
O meio mais frutífero de disseminação desta poesia parece ser a publicação de antologias, organizadas pelas associações, academias e sindicato de escritores, bem como pela iniciativa individual de poetas que possuem trânsito pelo meio e dedicação acentuada à poesia[8]. Vale ressaltar que tais antologias facilitam em muito a publicação, haja vista o alto custo para a impressão de livros de iniciativa individual de seus autores e o desinteresse das grandes editoras pela poesia, tendo em vista o seu pouco retorno financeiro.
A poesia de Brasília pode ser sim uma poesia que nutre utopias, que mantém-se viva, apesar das dificuldades relacionadas ao desinteresse crescente dos leitores e das editoras pela leitura de poesia. Em uma cidade de espaços tão abertos, o aprisionamento do espírito pelas mazelas de sua realidade urbana torna-se uma imensa contradição. A poesia emerge neste contexto como um espaço de extravasamento, de expressão e de comunhão entre seus habitantes. Comunhão que é celebrada ora nas reuniões e nos saraus das academias de Letras e nas associações de escritores, ora por meio das páginas dos muitos livros publicados na cidade, sejam nos individuais ou nas diversas antologias que, por si só, em sua diversidade, representam o espírito poético de Brasília.
Os ensaios que aqui se apresentam não se pretendem verdades, mas tão somente são, em essência, mais um olhar sobre os escritores e suas obras. Por serem ensaios, carregam um misto paradoxal de neutralidade técnica e opinião crítica. Não são interpretações. São análises. Não são ciência. São consciência.
A escolha do corpus abarcou aqueles poetas que o pesquisador julgou literariamente mais representativos em meio à diversidade de estilos e expressões. Foram selecionados poetas consagrados, outros de longa estrada, mas desconhecidos pelo cânone, outros jovens. Foram estudados: Anderson Braga Horta, Joanyr de Oliveira, Nelson Carvalho, Gustavo Rabelo, Aglaia Souza, Cristina Bastos, Nicolas Behr, Sandra Araújo, Joaquim Bezerra da Nóbrega e Salomão Sousa, além de um ensaio final sobre a poesia brasiliense e a poesia sobre Brasília publicadas e encontradas na Internet.
Por fim, cabe esclarecer que alguns ensaios abordam a obra poética completa do poeta e outros apenas um apanhado da obra, haja vista que, destes últimos, o pesquisador ou entendeu não ser necessária uma abordagem mais abrangente ou não conseguiu ter acesso à bibliografia completa, o que o fez trabalhar apenas com uma amostra significativa das publicações. Contudo, estas questões não prejudicaram em nada a análise crítico-literária aqui proposta.
[1] ‘Candango’ é o termo que teria sido utilizado para denominar as pessoas que vieram para Brasília, a fim de trabalhar em sua construção, entre os anos de 1956 e 1960. Mais tarde, este mesmo termo passa a ser utilizado, juntamente com o termo ‘brasiliense’, para designar os nascidos no território do Distrito Federal.
[2] Costa (2005, 23).
[3] Cf. Almeida Pinto (2002, 117-123).
[4] Sousa (2008, 15).
[5] Sousa (2008, 14).
[6] Sousa (2008, 15).
[7] Uma boa amostra deste cânone é a ‘galeria de ícones’ elaborada por Costa (2005, 263-406).
[8] Um panorama minucioso sobre a publicação destas antologias é apresentado por Costa (2005), destacando a importância destas obras tanto para a documentação histórica da literatura brasilense quanto para a promoção da poesia da capital entre os públicos local e nacional. Este estudo torna-se ainda interessante e importante por apresentar outras iniciativas relacionadas à valorização da literatura brasiliense, tais como a criação de entidades literárias e a realização de feiras. Realiza também um apanhado de vários livros publicados e estudos acadêmicos já realizados sobre a literatura de Brasília. Ademais, traz uma ‘galeria de ícones’ desta literatura, com um síntese biográfica e bibliográfica deste autores selecionados. Outra obra que apresenta uma revisão história da literatura de Brasília, especialmente a poesia, ainda que bastante conciso e por vezes um pouco confuso, é o estudo realizado por Mousinho (2002, 357-437).